quinta-feira, 28 de maio de 2009


A chuva caía, e naquele temporal era difícil de se entender. Há muitos anos palavras para eles era um meio controverso de se comunicar. Fugiam das palavras, corriam dos olhares. Contatos eram mínimos, funcionais e necessários. Ela ainda lembrava o gosto e a explosão do primeiro beijo. Mas, não passava de uma lembrança perdida no mar de muitas outras. Ele lendo o jornal em sua poltrona de couro, que já tinha o formato de seu corpo, pois há muito tempo ali se tornou seu "lar". Levantou-se, abriu um pouco a cortina com a ponta dos dedos. Olhou para o céu e disse: "Chuva grande que vem". Ela, na cozinha, cortando cebolas para a sopa, resmungou dizendo: "Ran! Chuva grande...tomara que venha e leve tudo mesmo!". Os dois sentaram à mesa. Ela o serviu. Ele tomou a sopa com a cabeça baixa durante toda a janta. Ela aflita, liga a TV, pois o barulho da colher batendo no prato a irritava. Ele parou o movimento mecânico colher-prato-boca e olhou para a TV. No noticiário avisava o temporal que estava por vir. Como quem não tem assunto, repetiu: "chuva grande mesmo essa quem vem". Ela tirou os pratos cansada. Ele sentou na poltrona entediado. Trovões começaram a despontar nos céus. As gotas de chuva que caíam pareciam pedregulhos despencando no telhado daquela velha casa. Vento, água, clarões no céu. Dentro da casa amarela de estilo colonial, dois ex-amantes em silêncio como que dois moribundos. De repente, apagam-se as luzes. Ele se levanta de supetão, anda rápido até a cozinha atrás de velas. Ela corre pelo corredor dos quartos até a cozinha. Nunca gostou de ficar só no escuro. Ele, agoniado, procurava as velas: "As velas, Rita! Cadê as velas?". Muitos trovões. Ela procurava depressa na gaveta do armário..."Eu não acho! A dona Carlota deve ter usado quando veio aqui fazer a novena pra Nossa Senhora de Fátima". Ele revirava os olhos com o ar de quem reprova. Sempre foi cético."Achei!", disse ela. Ascendeu rápido. Era a única que tinham. Levaram à sala e lá ficaram estáticos, como se estivessem alimentando-se daquela pequena chama. Um ao lado do outro no sofá, a vela à frente na mesinha de centro. Vento, água e clarões no céu. Um trovão estronda como se fosse o céu se rompendo! Ela o abraça amedrontada e com os olhos cerrados! Ele se impressionava, mesmo depois de tantos anos, ela ainda guardava em si os medos bobos da infância. Ela parou, sentiu seu cheiro amadeirado. Nossa, quanto tempo! No exato momento pairava em sua mente lembranças de um amor adormecido, que durou aquecido por 15 anos. Saiu de seus braços, deu um sorriso enferrujado meio sem graça e falou: "Nossa...trovão grande! Acho que caiu aqui por perto!". Ele a olhou no olhos, a longo tempo não fitava aqueles olhos vivos castanho claros. Sentiu arder o peito. Parecia que o abraço, o raio, o cheiro do cabelo dela e as lembranças abriram um portal para que seu coração podesse sentir de novo. Outro trovão. Ela quase pulou do sofá! Olharam-se e riram da cena patética de uma mulher de meia idade que pulava de medo de trovões. Respirou e disse: "O que houve conosco? Éramos felizes. Ainda lembro-me daqueles dias". Ela, com amargor na voz, ironizou: "Rá! O que houve? Tantas coisas, Carlos, tantas...". Ele desviou o olhar e baixou a cabeça. "Você nunca vai me perdoar, não é mesmo?" Ela seca, respondeu: "É doloroso ser enganada por quem mais se ama." Ele endureceu a face. Ela virou o rosto. Os dois já tinham falado, gritado, berrado o necessário durante os ultimos anos. Não se prestavam mais a isso. Ele respirou fundo, tocou-lhe as mãos e apertou seus longos dedos. Do rosto dela caíam lagrimas."Eu só queria ser feliz, amar, ter filhos, cozinhar pra você...Nunca pedi muito da vida, muito menos de você. Desejei que tudo isso fosse recíproco..." Ele, com a voz embargada, levantou os olhos e disse: "Mas te amo. Sempre te amei". Trouxe ela ao sei peito, afagou-lhe os cabelos, enxugou-lhe as lágrimas, e os dois permaneceram ali, à luz da chama, vivendo uma tempestade fora da janela e dentro deles mesmos.

Um comentário:

  1. marrróia só...lia à lá clarice lispector e seus momentos epifânicos! auhsuahsuahsuhauhsuahs...tá muuuuuuito massa mulher! adorei ^^

    ResponderExcluir